Mentir que é investidor qualificado pode ser crime, mas, na prática, pouco (ou nada) acontece (2024)

Em julho deste ano, o advogado João* achou que valia a pena mentir na corretora para ter acesso a um investimento. Assinou a declaração atestando que é um investidor qualificado, que possui mais de R$ 1 milhão em aplicações financeiras, para investir em um fundo de criptomoedas, um produto de alto risco e potencial de retorno, exclusivo para esse público.

João não tem esse valor em ativos financeiros. Investidor fora do banco há três anos, ele queria diversificar sua carteira e foi orientado a preencher o documento pelo seu assessor de investimentos. “Ele não me disse que eu não poderia, nem que não aconteceria nada. Só me falou que eu teria que assinar a declaração como investidor profissional para ter acesso ao fundo”, conta.

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“Dei uma pesquisada e não vi problema em fazer isso. Acho que essa declaração não tem potencial de gerar grandes consequências e só serve para as empresas se eximirem da responsabilidade pelos riscos que os investidores estão tomando”, diz.

Após quase um semestre, João está satisfeito com o retorno do seu investimento, apesar de saber dos riscos de perder dinheiro, e já investiu em outros fundos de investimentos no exterior exclusivos para qualificados. “A liberdade de poder assumir o risco é minha. Porque eu simplesmente não assino uma declaração dizendo que eu estou assumindo o risco, em vez de ser impedido de aplicar em investimentos muito bons porque não tenho R$ 1 milhão?”, questiona.

Em grupos on-line de pequenos investidores, volta e meia esse debate surge. Obviamente, é raro alguém assumir publicamente que mentiu que é qualificado ou profissional, com acima de R$ 10 milhões, para acessar produtos. Enquanto alguns criticam a categorização de investidores e defendem que nada acontece com quem mente, outros condenam a má fé e apontam possíveis problemas com o Código Penal e a Receita Federal.

Os riscos de mentir — na teoria

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), reguladora do mercado, criou essas definições com o objetivo de classificar produtos e proteger pequenos investidores, limitando o investimento em produtos muito complexos e de risco alto. Por trás da regra, está a ideia, questionada por alguns, de que quem tem mais dinheiro tem mais conhecimento sobre o mercado financeiro.

O único que pode se prejudicar com a mentira na declaração é o próprio investidor, segundo especialistas. Um dos riscos apontados é a exposição a investimentos mais difíceis de entender, já que, além de mais complexos e agressivos, há menos informações sobre esses produtos disponíveis para pequenos investidores.

“A pessoa vai se expor a aplicações que certamente não entende e vai comprar produtos que não são adequados para ela”, diz William Eid, coordenador do Centro de Estudos em Finanças da FGV. Se perder mais dinheiro do que esperava, o investidor perde o direito de alegar na CVM ou na Justiça que não sabia dos riscos que estava correndo.

Além disso, na teoria, quem mente pode ser acusado de crime de falsidade ideológica, cuja pena pode ser de até cinco anos de prisão, segundo José Luiz Rodrigues, especialista em regulação do mercado financeiro e sócio da consultoria JL Rodrigues & Consultores Associados. Ao assinar na declaração que é qualificado ou profissional, a pessoa está prestando uma informação falsa.

“Além de estar se colocando em risco, o investidor que mente está cometendo um crime. E isso é problema dele, não da corretora”, diz.

Na prática, porém, a mentira na declaração não é crime, na visão de alguns advogados. Isso porque, para a história ir parar na Justiça, o investidor precisaria reclamar que não teve conhecimento sobre os riscos ou precisaria ser acusado de crime pelo Ministério Público, após uma denúncia, ou pela própria corretora. Não faz sentido, segundo esse grupo de especialistas, já que as empresas estão protegidas com a declaração assinada e não têm prejuízo com a mentira.

Não vejo isso como um problema criminal, salvo se a corretora processasse o cliente. Mas a corretora não tem nada a ganhar com isso. Ela pode excluir a pessoa do produto ou como cliente da empresa”, afirma o advogado Samir Choaib, especializado em planejamento sucessório e tributário.

Segundo Choaib, o risco do investidor ter problemas com a Receita Federal também é muito pequeno, já que o investidor qualificado ou profissional não tem nenhum benefício fiscal e a Receita também não perde nada se a pessoa mentir. “Sendo qualificado, profissional ou não, se tiver imposto a pagar, o contribuinte vai pagar”, diz Choaib.

Em 18 anos de carreira, o advogado Felipe Hanszmann, sócio da área de societário do escritório Vieira Rezende, nunca viu nenhum caso desses ir parar na Justiça. “É um crime formal, mas quem buscaria essa responsabilização e iria contra o investidor para protegê-lo? É uma situação esdrúxula do ponto de vista prático, não consigo ver a máquina estatal fazendo isso. É ineficiente”, afirma.

Ele diz que entende que a CVM precisa colocar travas para informar investidores dos riscos dos investimentos e que não acha razoável que o órgão regulador imponha uma obrigação para as corretoras de fazerem uma auditoria profunda. “Não é isso que se espera da CVM, se não você aumenta custos e afasta as pessoas do mercado de capitais”, afirma.

No entanto, Hanszmann acredita que o volume de dinheiro que as pessoas têm não é o parâmetro mais eficiente para medir o seu conhecimento sobre investimentos. Na visão do advogado, seria mais eficiente melhorar o "suitability", o processo que identifica a tolerância a risco e os produtos de investimentos mais adequados para cada cliente, e o cruzamento de dados nas plataformas.

“O investidor poderia só declarar que topa o risco daquele investimento, em vez de declarar que tem uma carteira de determinado tamanho”, sugere.

Eid, da FGV, avalia que a CVM não pode legislar pensando na exceção dos que mentem. No entanto, ele aponta que é preciso haver um controle mais eficiente de quem compra o que nas plataformas de investimento. “Precisaria haver um esforço de educação financeira mais efetivo. COE, por exemplo, é um produto extremamente sofisticado, e qualquer um pode comprar”, diz.

Corretoras dificilmente flagram mentiras

Nas corretoras de investimento, é incomum flagrar investidores que mentiram que são qualificados ou profissionais. Julia Duarte, gerente do jurídico da XP, afirma que não lembra da corretora já ter flagrado alguma mentira depois que o cliente assinou a declaração de que era qualificado ou profissional. “Não me recordo de uma situação de o cliente já estar no produto e a corretora pegar, nem nunca fomos chamados no judiciário por causa de uma situação assim”, diz.

Ela explica que, para evitar as fraudes, a corretora só libera a declaração de investidor qualificado ou profissional e os investimentos exclusivos para esse público para quem já informou que tem mais de R$ 1 milhão ou de R$ 10 milhões no cadastro inicial. Nesse primeiro cadastro, no entanto, a corretora pode notar algum sinal atípico, pedir o Imposto de Renda e conferir se a renda declarada pelo investidor é a que ele tem, de fato.

“Já aconteceu de identificar clientes que caíram nesse filtro”, conta. Pedir o Imposto de Renda, porém, é exceção, e não regra. “Não existe uma regra clara que obrigue a plataforma a pedir o Imposto de Renda”, diz Julia. “São campos declaratórios do cliente.”

Em relação aos assessores de investimento, a gerente do jurídico da XP diz que a corretora tem uma área de governança que monitora esses profissionais. De acordo com Julia, essa área acompanha operações atípicas, como por exemplo, se um cliente compra um fundo muito diferente do que estava acostumado ou se muitos clientes de um mesmo assessor mudaram o seu perfil de investidor.

“Todo mês temos assessores descredenciados. Mas não posso afirmar que o descredenciamento é por isso.”

Na Guide, flagrar a mentira de investidores também não é comum, segundo Erick Scott Hood, chefe de produtos da Guide Investimentos. Ele afirma que, se houver prova de que o assessor indicou para um investidor do varejo comprar um produto para qualificado ou profissional, deve haver punição.

“Se a gente pegasse algum caso em que o agente autônomo fomentou a venda, o 'compliance' iria advertir. Mas não sei o tipo de advertência, porque nunca vi isso acontecer”, diz.

Mercado discute classificações

Entidades importantes e corretoras criticam essa classificação de investidores qualificados e profissionais.

Na avaliação de José Ramos Rocha Neto, presidente do fórum de distribuição da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), manter diferentes classificações para investidores que têm perfis de risco distintos faz sentido para proteger as pessoas. Porém, segundo ele, já existem grupos de trabalho na entidade para discutir melhorias nessas classificações.

“Já existem estudos na Anbima para avaliar se essa classificação é a mais adequada. Certamente apontamentos que existem hoje podem ser mantidos, mas existem novos que podem ser incluídos”, afirma. Rocha Neto diz que o mercado tem se preocupado mais com o processo de análise de perfil de risco do investidor e que a investigação e punição da Anbima tem aumentado.

“Esse mundo de investimentos sofreu uma revolução grande com a entrada de muitos investidores, distribuidores e gestoras. É importante criar autorregulações e acompanhar isso para que a indústria esteja cada vez mais evoluída e segura.”

No entanto, ele também afirma que, ao mentir que é qualificado ou profissional, o investidor assume totalmente o risco sozinho e que nem o fundo, nem o administrador e nem o distribuidor têm responsabilidade legal pela fraude. “A responsabilidade é exclusiva do investidor”, diz.

Julia, da XP, diz que acha ruim esse conceito de que quem tem mais dinheiro pode acessar determinados produtos. “Temos essa crítica e isso já foi levado à CVM. Dinheiro não representa conhecimento”, afirma. Segundo ela, a corretora já foi entusiasta de acabar com as classificações de qualificado e profissional e manter apenas o suitability, mas ouviu da CVM que em outros lugares do mundo também é assim, para proteger investidores.

De acordo com Julia, hoje a XP defende ampliar os conceitos. “Entendemos como melhor cenário hoje a melhoria das regras de investidor qualificado e profissional, para contemplar produtos que antes não estavam contemplados. Desde que melhore, o caminho que for está legal”, diz.

Hood, da Guide, concorda que a regra de investidores qualificados e profissionais deveria ser repensada. “Se o Brasil está buscando popularizar investimentos, você não pode limitar as pessoas pela capacidade financeira. Essa não é a melhor forma de segregar”, afirma. “Não deixa de ser uma limitação para essa democratização que falamos.”

Ele acha que todos deveriam poder investir em qualquer produto, desde que conhecessem o risco. No entanto, Hood diz que ainda é necessária uma ampla discussão para se chegar a uma alternativa. “Essa pergunta não tem resposta simples e rápida.”

O que diz a CVM

Daniel Maeda, superintendente de relações com investidores institucionais da CVM, confirma que não há punição para o investidor que mente que é qualificado ou profissional. No entanto, segundo ele, a pessoa perde o direito de reclamar que algo está errado com o seu investimento.

Maeda lembra que as plataformas de investimentos são obrigadas a analisar o perfil do investidor desde 2013, por meio da Instrução CVM 539. Essa identificação é feita em três passos: no cadastro na plataforma, quando a pessoa preenche a sua renda e os investimentos já feitos, no suitability, um questionário mais aprofundado, e na declaração de investidor qualificado ou profissional.

Segundo o executivo, as corretoras e distribuidoras não são obrigadas a fazer uma checagem, cruzando a declaração de investidor qualificado ou profissional com dados do Imposto de Renda, por exemplo. “Não tem uma comprovação obrigatória”, afirma. Maeda diz que a CVM não pode se ater a quem não declara a sua situação real, nem impor mais custos e burocracias às empresas. “Não podemos prever na regulação a mentira como premissa. A premissa é de boa fé.”

De acordo com Maeda, as plataformas de investimentos podem identificar situações em que o investidor diz que é qualificado e não é, por conhecer seu estilo de vida e sua renda declarada, e pedir algum documento ou questioná-lo. Segundo ele, as irregularidades podem chegar à CVM por meio de reclamações de investidores e, nesses casos, o órgão regulador pede à empresa que confirme se o investidor é qualificado ou não e retifique o cadastro.

Questionado se a CVM supervisiona se as corretoras e distribuidoras fazem alguma checagem, Maeda diz que há uma supervisão preventiva, mas não diretamente no cadastro dos investidores, porque, segundo ele, o órgão não teria capilaridade para isso.

“Supervisionamos se os controles dos intermediários são robustos e coerentes, se atacam os riscos adequadamente, se as declarações cabíveis estão sendo pedidas, como é o compliance e a governança e como o intermediário monitora a ponta dos assessores de investimentos.”

Em relação aos assessores de investimentos, Maeda afirma que as plataformas de investimentos devem ter manuais de trabalho para seus agentes autônomos e garantir que eles cumpram o que foi determinado. Ele diz, ainda, que a CVM supervisiona se os códigos estão sendo colocados em prática.

De acordo com Maeda, o suitability é um dos temas prioritários de discussão no órgão regulador e há um grande esforço de prevenção relacionado a esse assunto. "Temos um esforço preventivo grande nesse assunto. Reconhecemos que é algo em alta.” Enquanto as discussões avançam, porém, os questionamentos de pequenos investidores continuam.

*O nome verdadeiro foi omitido a pedido da fonte.

Mentir que é investidor qualificado pode ser crime, mas, na prática, pouco (ou nada) acontece (1)

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